Se o Brasil é o país onde o futuro já chegou, como definiu Barack Obama, os preparativos para a Copa de 2014 e para as Olimpíadas de 2016 são sinais de um incômodo retrocesso.
Quase quatro anos depois de ter assegurado o direito de organizar o Mundial e a alguns meses do segundo aniversário da vitória da candidatura olímpica, o Brasil do discurso e o da prática seguem desalinhados.
Um fala em desenvolvimento e mudança. O outro desnuda o atraso, alerta para os custos elevados, a ineficácia dos órgãos públicos e uma participação da sociedade nas decisões à beira da inexistência que a faz se perguntar se a chance de transformar a vida do brasileiro comum terá escorrido pelo ralo político ao fim dos Jogos do Rio.
— Vamos realizar tanto a Copa como as Olimpíadas com eficiência, mas isso não significa que estejamos sabendo aproveitar da melhor forma essa janela de oportunidades — responde o economista Sérgio Besserman, que, como carioca, vê nos eventos a oportunidade de consolidação da marca do Rio por décadas, mas se mostra ressabiado com a qualidade do legado que a cidade terá.
— É preciso aplicar conhecimento nesse objetivo. Atrasos x custos O temor de Besserman é também o de atores de diversos segmentos que acompanham com atenção os dois processos.
Primeira no cronograma, a Copa do Mundo é um sonho aflitivo. Após a severidade do relatório de fevereiro do Tribunal de Contas da União (TCU), que condenou atrasos em obras de estádios, infraestrutura e a lentidão do Ministério do Esporte na entrega das matrizes de responsabilidade para intervenções em portos e aeroportos, o planejamento do evento e sua execução foram novamente postos em xeque.
Os custos, bancados na maioria dos projetos pelo governo federal, exigem atenção. Treze meses após a divulgação do orçamento para construção e reforma de estádios, os valores de cinco deles — Mineirão (Belo Horizonte), Fonte Nova (Salvador), Maracanã (Rio), Arena da Amazônia (Manaus) e Cidade da Copa (Recife) — já estão 57,6% mais caros, de acordo com cálculo feito pelo GLOBO com base em dados originais fornecidos em janeiro de 2010 pelo ex-governo Lula. Saltaram de R$ 2,6 bi para R$ 4,1 bi. Nos casos de cidades como Manaus e Cuiabá, a sombra dos elefantes brancos tende a crescer à medida que a areia escorrer pela ampulheta.
— O que houve no Estádio Mané Garrincha depois daquele Brasil e Portugal de dezembro de 2008? — indaga Gil Castelo Branco, fundador e secretário geral da ONG Contas Abertas, lançando luz sobre o estádio de Brasília, outra obra faraônica de R$ 671 milhões.
Por mais transparência Criado pela Controladoria Geral da União (CGU) como instrumento de controle social dos investimentos públicos, o site Copa 2014, hospedado no Portal da Transparência, é uma iniciativa que ainda não presta o serviço a que se propõe. Sua desatualização fere o princípio da transparência, ainda visto pelo Estado mais como inimigo do que aliado.
As planilhas de execuções orçamentárias e prazos da reforma do Mineirão são um bom exemplo. Sobre aquela que é considerada a obra mais avançada, a última atualização de valores contratados e executados é de 6 de agosto do ano passado.
A responsabilidade de repasse das informações é dos órgãos envolvidos — Ministérios do Esporte, Turismo, Cidades, e BNDES, governos estaduais e municipais — que não têm encaminhado os dados no prazo previsto pelo decreto presidencial assinado pelo ex-presidente Lula.
— Já conversei com o Orlando Silva. É o ministério do Esporte que centraliza esse processo — explica o ministrochefe da CGU, Jorge Hage.
Orlando Silva é evasivo ou nada diz sobre os atrasos. Para ele, a transparência está a caminho, com a criação de escritórios onde equipes ligadas à pasta passariam a fazer o monitoramento dos dados:
— Queremos ter equipes em cada cidade-sede para tornar a atualização frequente.
Mobilidade urbana
O olhar intruso, às vezes, é mais revelador. Em apenas um fim de semana, Obama identificou problemas e uma oportunidade. Firmou um acordo pelo qual os americanos passarão a auxiliar o Brasil na realização da Copa e dos Jogos. Já sua visão de que a governança já deixou de ser uma pedra nos caminhos do país rumo ao desenvolvimento soou como mero exercício de diplomacia. Com eleições municipais em outubro de 2012, a possibilidade de que projetos referentes aos megaeventos esportivos virem tema de discussão política, atrasando- os e os encarecendo, nunca pode ser desconsiderada.
— O diálogo entre as esferas é fundamental, mas em época de eleição tudo vira motivo de polêmica — afirma Gil.
Após longo período de inanição na questão da mobilidade urbana sustentável, o Brasil se vê diante de uma oportunidade histórica para mudar o panorama.
As exigências da Fifa por projetos como metrôs, VLTS e BRTS jogam a favor da melhora da circulação nas áreas metropolitanas.
Apesar da tradição de Salvador de não conduzir bem obras grandiosas, o projeto de BRT da cidade pode trazer benefícios significativos para a capital baiana. Já o de Brasília fará atendimento mais qualificado em relação ao que hoje atende às cidades satélites.
— Não queremos que o Estado mostre capacidade de gerar eventos, mas legado — avisa o coordenador do escritório de Brasília da Agência Nacional de Transporte Público (ANTP), Nazareno Stanislau Afonso. — Nosso interesse é operar o que já foi feito, não dá mais para abrir discussão.
Crítica à falta de debate A falta de debate sobre os projetos, porém, é o que mais tem incomodado o presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), Sérgio Magalhães, membro do Conselho de Legado das Cidades, criado pelo prefeito Eduardo Paes para tratar da herança olímpica. Na visão dele, a ausência de discussão pela sociedade tem induzido a decisões centradas, autocratas, poucos transparentes, que ignoram a identidade cultural e a representatividade coletiva de cada cidade-sede, indo na contramão da tendência nas principais metrópoles mundiais.
— Os eventos deveriam gerar debate, de onde surgem as melhores propostas — diz, citando o concurso público do Porto Olímpico, que selecionou 87 entre os mais de mil projetos inscritos. — Decisões importantes não podem ficar restritas a um administrador, por melhor que ele seja. ■
‘Temos de buscar 10 em transparência’
● Atual presidente da Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável e de Governança Metropolitana da cidade, o economista e ambientalista Sérgio Besserman faz coro aos que veem a Copa de 2014 e os Jogos de 2016 como uma oportunidade única para o país, mas, para tirar o máximo proveito dos eventos, o Brasil precisa ser mais rígido com o que se propõe a fazer.
● O GLOBO: O que podemos ganhar de melhor com a Copa e as Olimpíadas?
SÉRGIO BESSERMAN: O maior legado para o Brasil e para o Rio de Janeiro, em particular, é a valorização da marca. Vale mais do que os equipamentos e as transformações estruturais que vão acontecer.
● O que pode acontecer de melhor para essa valorização?
SÉRGIO BESSERMAN: A marca do Rio é ligada à sustentabilidade. Esse desafio é expresso pelo Rio, com suas coisas boas e ruins. Se a agenda do planeta é essa, a cidade e o país devem caminhar nesse sentido. Os olhos do mundo estarão voltados para cá. Acredito que faremos os eventos com eficiência, mas não sei se seremos capazes de trabalhar com um grau de satisfação para o que é mais valoroso no século XXI. Vai depender dos governos, do empresariado, da sociedade.
● Os projetos estão de acordo com esta realidade?
SÉRGIO BESSERMAN: De modo geral, atendem a certificados estrangeiros, poucos possuem adicionais, mas precisamos apresentar projetos que incluam algo originalmente brasileiro. Isso é mostrar o algo mais, fazer marketing com “M” maiúsculo. É não se propor a fazer eventos nota sete. Temos de buscar a nota dez.
● A participação da sociedade não deveria ser mais efetiva?
SÉRGIO BESSERMAN: A afirmação da marca também depende disso. Não é possível fazer eventos extraordinários sem o engajamento da sociedade. É preciso que a população se sinta mais dona da Copa do Mundo, das Olimpíadas... Há atores engajados, que cobram, fiscalizam, fomentam discussão. O Brasil está emergindo, mas tem uma governança atrasada. Isso não significa uma crítica a esse ou àquele partido, é uma questão histórica, que torna difícil a realização de um trabalho sofisticado de valorização da marca.
● A transparência dos processos não lhe parece fundamental?
SÉRGIO BESSERMAN: Temos de buscar a nota dez em transparência não só para garantir a boa gestão de recursos, mas para a valorizar a marca. Temos de buscar essa luz sempre. E acompanhar o andamento dos processos amigavelmente, com cidadania.
● O que pensa sobre o financiamento público das obras?
SÉRGIO BESSERMAN: Como economista, acho uma pena. O negócio é bom, capaz de atrair investimento privado, e a competição gera um produto melhor. Com o tempo, seria interessante viabilizar maior presença do capital privado, nacional e estrangeiro.