quinta-feira, 17 de março de 2011

Força indomável

 Longe das piscinas, Rebeca Gusmão se diz injustiçada. Mesmo depois de muitas quedas, ainda luta para voltar a ser reconhecida: no esporte e, acima de tudo, na vida pública




















O compromisso estava agendado para as 15h, e o relógio já indicava 15 minutos de atraso. "É impossível encontrar uma vaga por aqui neste horário", ela reclama, antes de avistar um espaço vazio. Não está desocupado sem motivo - é uma curva em que outros veículos contornam rumo à saída do estacionamento. Decidida, ela resolve parar ali mesmo. São mais alguns minutos até encontrar o prédio onde está localizada a Administração Regional de Brasília, equivalente à prefeitura da cidade. Depois de explicar à recepcionista o motivo de estarmos ali, chega a hora de efetuar o cadastro para a entrada. "Nome?", a atendente pergunta. "Rebeca Gusmão."

A atendente sorri de modo efusivo, como se estivesse honrada com a presença da visitante. Ela pede uma foto para ficar registrada no sistema, agora não com a falta de empolgação de quem apenas realiza o próprio trabalho e sim com a jovialidade de uma admiradora. Cerca de uma hora depois, não soa estranho que a mesma recepcionista avise na saída: "Sua foto vai ficar aqui, viu?", em tom de quem conta agora com um tesouro a ser invejado.


O nome Rebeca Gusmão tornou-se maior do que a pessoa - o que quer dizer muita coisa em se tratando de uma mulher com 93 kg distribuídos em 1,78 m. Como atleta olímpica, Rebeca foi a esportista mais comentada da natação feminina brasileira na década passada - não apenas por sua performance nas piscinas. Profissional das águas desde os 12 anos, ela tem no currículo três jogos Pan-Americanos (Winnipeg, Santo Domingo e Rio de Janeiro), uma Olimpíada (Atenas, em 2004) e campeonatos que variam de prefixo, indo de municipais a mundiais. Saldo da carreira: cerca de mil medalhas; viagens por todos os continentes; recordes sul-americanos; dois escândalos de doping; um processo criminal; suspensões e, por fim, o banimento definitivo da natação.


O assunto a ser tratado no prédio municipal, contudo, não tem nada a ver com esportes, ao menos não diretamente. "Vou ver se ele me dá uma força", explica Rebeca, referindo-se à reunião com Messias de Souza, atual administrador (ou prefeito, na linguagem do resto do país) de Brasília. Ambos são parceiros de partido político. Rebeca candidatou-se ao cargo de deputada distrital pelo PC do B nas eleições de 2010, mas fracassou. Tenta, agora, um cargo por indicação, mas também por méritos próprios: o objetivo é criar (e assumir) a subsecretaria de esportes de alto rendimento (quando o esportista se especializa em uma modalidade, visando competir por seu país).


A reunião ocorre a portas fechadas. Rebeca usa jeans, sandálias, camisa branca e algo que ninguém ali consegue notar: o maiô de natação. Usa-o porque horas antes estava na academia, onde nadou durante cerca de 1h30. Mas, naquele momento, o traje tem valor simbólico: uma segunda pele ou, no mundo da fantasia, o uniforme de um super-herói. Ela é, naquele momento, uma espécie de Peter Parker real: esconde sua identidade (de nadadora) por trás de uma roupa social, e embora queira se libertar para viver essa identidade, uma série de teias sociais (e legais) a impede. Vive como uma cidadã comum - inclusive com as mesmas dificuldades financeiras que afetam o herói da ficção.


"A grande diferença entre nadar e meditar é: nadar faz você pensar muito", Rebeca filosofa, após finalizar mais um dia de treinamentos na piscina de uma academia em Brasília. São 5 mil metros na água, parte dos quais são cumpridos em um exercício de 30 minutos sem pausas. Observar a atividade tem um quê de tédio, que não combina com o estilo explosivo da nadadora que fez carreira como velocista, disputando provas de 50 e 100 metros. A intenção agora não é mais superar limites, mas algo mais simples: perder peso. Os 93 kg de hoje eram os 103 de um mês atrás e serão 83 em um futuro não muito distante.


A natação, aliada a uma pesada rotina de treinamentos, moldou um corpo que impressiona visualmente. Os músculos não são hipertrofiados, mas bem definidos. Uma das tatuagens, duas linhas do salmo 91, em latim ("Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido"), ocuparia as costas inteiras de uma modelo esguia se transferida nas mesmas proporções.


O universo de Rebeca é rodeado de termos que deixam explícita sua grandeza física, que vão dos apelidos (Kong, Muralha, Gigante) ao patrocinador pessoal, a bebida energética Mamute. Os esportes que vieram depois da natação - futebol e levantamento de peso - também seguem no ritmo da força e explosão muscular. Por trás do corpo de colosso, porém, esconde-se uma alma cujos prazeres - maquiagens, vestidos, idas ao salão - e medos (baratas!) são eminentemente femininos. São detalhes conhecidos apenas por um círculo restrito de família e amigos. "Essas pessoas conhecem a Rebeca mulher. Às outras pessoas, que não são desse ciclo, interessa a Rebeca atleta", ela afirma, categórica. "A atleta é uma pessoa competitiva, focada, mais séria, sempre tem uma consideração maior. A Rebeca pessoa é meiga, amiga, carinhosa, que gosta de conversar, de ser companheira", ela mesma define-se. "As únicas características que eu tenho em comum, atleta e pessoa, são as minhas medalhas."


À frente do gravador, é a primeira personalidade que prevalece. Já ao celular, as ligações atendidas por interjeições açucaradas como "mamãe", "painho", "papi" e "pixuquinho" - esta última destinada ao marido - dão contornos adolescentes à Rebeca mulher, reforçados por aspectos visuais como as espinhas no rosto e o piercing com um pequeno dado na orelha.


Não é, no entanto, a imagem de uma Rebeca delicada, incapaz de matar baratas, que ronda o imaginário popular. Divulgado em setembro de 2007, um exame antidoping realizado durante o troféu José Finkel (Santa Catarina), em maio de 2006, apontou positivo para testosterona exógena (não produzida pelo organismo). Dois meses depois, a Federação Internacional de Natação (Fina) tornou público o resultado de outro exame, dessa vez realizado durante os Jogos Pan-Americanos do Rio, que também apontava positivo para a mesma substância.


Os episódios, em conjunto com as imagens que comparavam o físico de Rebeca em tempos distintos - 1999 e 2007 - foram suficientes para a opinião pública declará-la culpada. Cada um dos casos, julgados em períodos diferentes de 2008, rendeu uma suspensão de dois anos à nadadora. O acúmulo das punições teve o desfecho previsto pelas regras da Fina: o banimento definitivo da modalidade, ratificado em novembro de 2009 pela Corte Arbitral do Esporte, a mais alta instância da justiça desportiva mundial.


"O que fizeram comigo foi uma tremenda injustiça. Enquanto eu tiver recursos, vou seguir em frente para provar minha inocência", diz Rebeca. Seus argumentos são fundamentados em provas e contraprovas científicas, e em desvios de conduta do laboratório canadense onde seus exames foram realizados e dos profissionais envolvidos no processo. Os documentos oficiais estão sendo digitalizados e colocados aos poucos no site de Rebeca. Faz parte da diplomacia pessoal da esportista não citar nomes, mas um não escapa: Eduardo de Rose, membro do Conselho de Fundação da Agência Mundial Antidoping (Wada) e diretor do departamento Antidoping do Comitê Olímpico Brasileiro (COB).


"Em relação ao meu caso, ele se mostrou completamente arrogante, sem ética profissional. As atitudes dele mostravam que ele tinha algo contra mim", ela desabafa, com um tanto de rancor, amparada por declarações à imprensa dadas pelo médico no fim de 2007, quando ele dizia que "tinha de pegar a Rebeca". "A primeira pergunta que meu advogado fez a ele na Suíça, em julgamento, foi se ele deu as declarações nos jornais, e ele negou, disse que foi invenção da imprensa." Os procedimentos adotados no caso levantaram a desconfiança de pessoas ligadas diretamente a ele, como a médica Renata Castro, da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), que pediu seu próprio afastamento da instituição. "Ela me disse: 'Rebeca, eu prefiro sair a saber que ajudei a estragar com a vida de alguém'", relembra a ex-nadadora.


Discutir os casos de doping não altera sentimentos em Rebeca. A entonação na voz muda em certas passagens da história, mas nada que deixe sentimentos de raiva, tristeza ou melancolia explícitos. Pelo contrário: quanto mais se abre ao público, mais ela tem a certeza de que muda a visão das pessoas sobre si própria.


Uma dessas pessoas foi o delegado Marcos Cipriano, uma das figuras principais no caso que mais mexe com os brios da esportista. Em uma noite de novembro de 2007, uma reportagem no Jornal Nacional noticiou que Rebeca poderia pegar de um a cinco anos de prisão por falsidade ideológica por ter supostamente fraudado os exames antidoping no Pan-Americano do Rio - dois DNAs diferentes foram confirmados nos resultados. Após conceder um depoimento de mais de cinco horas, Rebeca diz ter convencido o delegado com seus argumentos. "Eu ouvi da boca dele: eu acho que você é inocente", ela diz.


No âmbito jurídico, o caso foi finalizado em agosto de 2009 com a absolvição de Rebeca. O juiz do caso deu voz à defesa, para a qual as amostras de urina para o exame foram trocadas indevidamente de frasco, sem a presença da atleta ou de qualquer pessoa de sua confiança. Por outro lado, o escândalo da troca de urinas levou a Organização Desportiva Pan-Americana a cassar as quatro medalhas que a nadadora havia ganhado no Pan de 2007 - uma de bronze, uma de prata e duas de ouro, as primeiras da história da natação feminina na competição.

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